O Golpe, o INSS e Minha Mãe: Uma Comédia da Vida Real (Se Não Fosse Trágico)
Minha mãe, Maria de Lourdes, 73 anos, aposentada, costureira desde os 14 e com mais fé na honestidade do que o próprio Papa. Foi ela que me ensinou a não aceitar balinha de estranho, a sempre lavar o pescoço quando fosse sair e a não confiar em quem sorri demais com os olhos vazios. Ela só não aprendeu — e nem eu — como escapar do maior vilão da terceira idade: a tal burocracia brasileira.
Tudo começou numa terça-feira nublada, daquelas que já anunciam desgraça só pela cor do céu. Minha mãe recebeu uma notificação do INSS dizendo que o benefício dela seria suspenso por “inconsistências cadastrais”. Achei que fosse só mais uma daquelas cartas que o governo manda pra gente treinar paciência, mas a velha arregalou os olhos e disse:
— Tão querendo me passar a perna. Logo eu, que sou ligeira!
E foi.
Descobrimos que alguém, em alguma parte deste Brasilzão corrupto, tinha usado os dados da minha mãe para abrir um segundo benefício. Fraude. Golpe. Usaram o CPF dela, abriram conta, movimentaram dinheiro e tudo isso sem que a pobre alma soubesse.
— Mas minha filha... eu mal sei fazer Pix!
A frase virou mantra nos dias seguintes, porque começamos o que eu hoje chamo de “A Via Crucis dos Desvalidos do INSS”.
Primeiro passo: agendar atendimento. Tentamos pelo site. Caiu. Tentamos pelo aplicativo. Travou. Tentamos por telefone. Uma senhora chamada Sônia nos atendeu após 47 minutos de “Para sua segurança, esta ligação está sendo gravada” e disse que o atendimento presencial só acontecia com agendamento online.
— Mas o site não funciona.
— Sim, senhora. A senhora precisa tentar de novo.
— E se não funcionar?
— Tenta mais tarde.
Minha mãe olhou pra mim e disse:
— Tenta, filha. Porque se depender de mim, eu tento tacar esse celular no chão.
E assim começou nossa saga.
Fomos de cartório em cartório buscando provas de que minha mãe é, veja bem, ela mesma. RG, CPF, certidão de nascimento, comprovante de residência, carteira de vacinação da década de 60, até o diploma de catequista. Tudo.
No INSS, depois de conseguir finalmente ser atendidas num posto onde a fila era tão longa quanto novela das nove, ouvimos a seguinte pérola:
— Infelizmente, o sistema não permite reverter o processo de suspensão de imediato. A senhora precisa esperar a investigação.
— Quanto tempo leva essa investigação?
— Não temos prazo. Pode levar meses.
Minha mãe, com sua voz mansa que sempre antecede o caos, respondeu:
— Então eu como o quê? Arquivo PDF?
O atendente não riu. Eu também não. Porque era verdade. A aposentadoria é o único sustento da minha mãe.
O que seguiu foram dias de visitas ao banco, boletins de ocorrência, formulários sem sentido, senhas anotadas em papel, xícaras de café frio e a constante sensação de que nada seria resolvido a tempo. Minha mãe foi vítima de uma fraude. E o sistema, ao invés de protegê-la, parecia mais empenhado em atrapalhar.
E é aí que mora o verdadeiro escárnio: quando um idoso precisa provar que está vivo, consciente e lúcido, mas o golpista pode ser só um número com acesso a uma rede de dados comprometida.
Descobrimos, inclusive, que a tal conta fraudulenta foi aberta num banco digital, usando um endereço de outro estado e movimentando valores que minha mãe nem sonha em ter. A polícia civil nos desejou “boa sorte”. O banco disse que “ia analisar”. E o INSS… bem, o INSS disse que “entendia a situação”.
Minha mãe, já sem paciência, virou uma espécie de justiceira da terceira idade. Começou a alertar vizinhos, escrever cartazes improvisados na igreja, fazer vídeos no WhatsApp explicando o golpe. E, de forma meio cômica e muito triste, virou conselheira informal de outros idosos vítimas da mesma história.
Teve o seu Mário, de 81 anos, que teve o nome usado para pegar empréstimo. Teve a dona Iolanda, que descobriu que alguém pediu cartão de crédito em nome dela. E teve até uma senhora que recebeu cobrança de um plano funerário premium no nome dela — detalhe: ela ainda estava viva e com saúde de ferro.
Entre um caso e outro, entre um “não podemos fazer nada” e outro “aguarde retorno”, percebi como a velhice, nesse país, é tratada como bagagem extraviada. Quando aparece o problema, ninguém assume. Ninguém resolve. E você ainda ouve:
— Deixa quieto. Ela já viveu bastante.
Como se dignidade tivesse prazo de validade.
A parte tragicômica disso tudo foi quando minha mãe disse:
— No fim das contas, a diferença entre o fraudador e o governo é que o primeiro, pelo menos, é rápido.
Eu ri. E chorei. Ao mesmo tempo.
Ainda estamos aguardando solução. O dinheiro continua bloqueado. A justiça, lenta. Mas minha mãe segue firme. Outro dia ela me disse:
— Se um dia eu for pra Brasília, eu mesma levo meus documentos e uma faixa escrita: ‘EU EXISTO, CARALHO’.
E eu não duvido. Porque se tem uma coisa que minha mãe aprendeu nessa vida é que, quando o Estado não protege, a gente grita. Nem que seja com a dentadura na mão e o chinelo no outro.
Fim, por enquanto. Porque a novela ainda não acabou, e sinceramente? Tá pior que qualquer capítulo das nove.